segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Os estranhos do bem

Pouco lembro do apartamento onde passei minha infância, mas não esqueci nada da rua onde morava , das casas vizinhas , do
quarteirão inteiro onde eu brincava desde o início da tarde até o início da noite e, por vezes, inclusive à noite. Naquela época não havia medo de assaltos, de atropelamentos, de sequestros
relâmpagos: a gente pegava a bicicleta e saía com a maior liberdade, sem pânico nem neuras, o oposto do que acontece hoje, quando as crianças só podem brincar dentro do prédio, em prisão domiciliar. Porém, mesmo com liberdade, havia um perigo rondando. Você deve lembrar o que
nossos pais buzinavam em nossos ouvidos a cada vez que abríamos a porta de casa para sair: Não dê conversa a estranhos. Mais uma vez, é o oposto do que acontece
hoje. Trancafiados em casa, com as
bicicletas enferrujando na garagem, não se faz outra coisa a não ser dar conversa a estranhos.

Quando menina, eu me perguntava: o que será que eles (os adultos) querem dizer com “ estranho”? Estranho, pra mim , era um cara que usasse óculos escuros à noite,
tivesse um bruta cicatriz ao lado da orelha e uma faca ensanguentada entre os dentes.

Mas estranho , pra eles , ia além : era qualquer um que a gente não conhecesse. Podia ser o pároco do bairro: um estranho. Corra! Assim que tive idade para diferenciar
conhecidos e estranhos , acolhi ambos. De um lado, me apegava às amigas do colégio, todas falando igual, vestindo igual, pensando igual e usando o mesmo cabelo:
nada como reforçar nossa identidade. De outro , queria saber como era viver em outro país, ter experiências diferentes das minhas, outros costumes. Os livros e o cinema alimentavam essa minha
curiosidade , mas não bastava. Então me inscrevi num programa de intercâmbio de correspondências e acabei fazendo
amizade com a Julie, que morava no
interior da Inglaterra, com o Carlos, que morava no México, e com a Michelle, que morava na Nova Zelândia. Trocávamos fotos, falávamos da nossa vida pessoal ,
contávamos segredos que atravessavam oceanos, tudo em cartas escritas ora em inglês, ora em espanhol, e quando ninguém
se entendia, desenhava -se . O que foi feito deles? Não faço a mínima ideia . Mas foram esses estranhos que ampliaram um pouco os meus horizontes e deram sabor de
aventura à minha adolescência.

Aí a gente cresce e inventam um troço chamado computador. E os pais somos nós! Conscientes das nossas responsabilidades, batemos à porta do quarto das crianças e damos sequência à tradição, alertando -os : “Não dê conversa a
estranhos”.

Quá, quá , quá.

Afora as orientações inevitáveis contra pedófilos e mal-intencionados em geral , é
preciso relaxar : ninguém com mais de 10 anos evita estranhos, ao contrário, eles são buscados freneticamente no MSN , no
Facebook, no Twitter , no Orkut , onde todos se expõem, transformando o mundo num
gigantesco albergue coletivo. Uma versão ligeiramente mais abrangente e instantânea do que aquele meu programa de correspondência internacional.

Jamais pedi atestado de bons antecedentes para quem não conheço . Estranho é mau?
Estranho é pior do que a gente? Se
devemos ter vigilância com nossos filhos - e devemos mesmo - é preciso também controlar a paranoia e não surtar por eles
trocarem ideias com quem nunca viram antes, e provavelmente jamais verão. Dar conversa a estranhos não significa dar o endereço, o telefone e a senha do banco.

Pode ser apenas um bate- papo divertido. E só pra lembrar: estranhos, somos todos.

(texto de Martha Medeiros, publicado no jornal Zero Hora / RS)
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